'Mexer com a pós-graduação é mexer com o sistema todo de pesquisa no país', diz ex-presidente da Capes
O bloqueio de bolsas de mestrado e doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento e Pessoal de Nível Superior (Capes) traz efeitos "imediatos" para pesquisas nos mais diversos campos, "com forte prejuízo para os programas e para a dinâmica da pós-graduação", diz o ex-presidente da agência Abílio Baeta Neves.
Hoje assessor da reitoria da PUC de Porto Alegre, Baeta Neves presidiu a Capes durante os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso e também ao longo do governo de Michel Temer.
Ele destaca que as crises estão longe de ser um ponto fora da curva na história da agência e da pesquisa científica no país - lembrando os fortes cortes impostos no governo de Dilma Rouseff e o fechamento da agência na Presidência de Fernando Collor - mas considera "estranho" que a Capes e o MEC aceitem o bloqueio "sem o mínimo de resistência".
"É comum que as contas públicas não batam com o que a gente espera", afirma o ex-presidente da Capes. "O que é mais raro é não defender o orçamento, como se vê na reação do MEC e da Capes. É aceitar o corte, o contingenciamento, como se fosse natural e absolutamente absorvível, sem consequências para o sistema."
Após a reação negativa ao anúncio do bloqueio das bolsas de pós-graduação na quarta-feira, 8, o atual presidente da Capes, Anderson Ribeiro Correia, relativizou o impacto da medida, afirmando que o bloqueio representa menos de 2% das "cerca de 200 mil" bolsas que a Capes possui no Brasil e no exterior - e as que sofreram corte estavam ociosas. Outras 1.324 bolsas foram suspensas para análise.
O critério da ociosidade, porém, é controvertido, já que as bolsas deveriam seriam disponibilizadas no sistema da Capes em maio. Baeta Neves explica que o fluxo de bolsas é constante à medida que mestrandos e doutorandos concluem os seus trabalhos, beneficiando os próximos estudantes na fila, e assim permitindo a continuidade de projetos de pesquisa em programas de pós no país.
"Os projetos de bolsistas alimentam projetos de professores, alimentam grandes projetos de pesquisa. Mexer com a pós é mexer com o sistema todo", diz Baeta Neves.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil.
Qual é o impacto da suspensão das bolsas?
Abílio Baeta Neves - O impacto é imediato. Se você suspende a concessão de bolsas, você prejudica imediatamente o sistema de pós-graduação.
É preciso fazer uma distinção. Não é a Capes que concede as bolsas (de) pós. Ela destina cotas às universidades, com base nas quais as universidades organizam a dinâmica de sua pós-graduação. As cotas não são preenchidas apenas uma vez ao ano. Há um fluxo contínuo de mestrado e doutorado, uma dinâmica contínua de ingressos e de benefício através das bolsas de mestrado e doutorado, e isso é muito importante.
Se um curso recebe informação de que não pode repor suas bolsas, isso provavelmente vai ter um impacto para vários estudantes que estavam na expectativa. Por exemplo, um grupo de bolsistas concluiu seus estudos em março, mas agora bloquearam os recursos da universidade e o curso não pode escolher outros. Alguns estudantes vão ter que desistir, outros vão ter que espaçar mais a sua formação.
O sistema vive dessa capacidade de reposição. Nesse sentido, já há um prejuízo para os programas. E também com relação à confiança no sistema todo de fomento. Se os jovens começarem a perceber que a formação com bolsa começa ficar muito incerta, isso faz com que comecem a repensar seus projetos. Se aqui esse caminho começa a se fechar, tenho de pensar em outras oportunidades.
O impacto é verdadeiro e não é daqui a pouco, é logo, com forte prejuízo para os programas e para a dinâmica da pós-graduação.
Que efeitos isso pode trazer para a pesquisa científica no Brasil?
Toda as áreas são cobertas pela pós-graduação, por mestrandos e doutorandos, que sustentam a atividade de pesquisa no país. Os projetos de bolsistas alimentam projetos de professores, alimentam grandes projetos de pesquisa. Mexer com a pós é mexer com o sistema todo.
As engenharias, por exemplo, com enorme impacto para processo de desenvolvimento tecnológico, que afeta positivamente a nossa economia. A área de saúde, que tem inúmeros exemplos de dissertações e teses fundamentais nos mais variados campos, como (o estudo do vírus causador da) zika, produzindo estudos de referência. Ou na área química, vemos que a Petrobras continua recorrendo às universidades brasileiras, porque sabe que tem um repertório de pesquisas que podem ser muito importante para sua atividade.
O governo Temer também ameaçou cortes pesados à verba da Capes quando o senhor presidia a instituição. Como esses cortes foram contidos?
Nos últimos dois anos, houve ameaças semelhantes de cortes na Capes. Em meados de 2018, se dizia que o orçamento tinha que ser bloqueado, inclusive para não ameaçar as perspectivas para esse ano. Bem. Não se fez esse corte. Inclusive o Conselho Superior da Capes escreveu uma carta, encaminhada ao ministro da Educação, sobre impacto que os cortes teriam se fossem implementados.
É comum que as contas públicas não batam com o que a gente espera. Conhecemos isso de outros períodos. O que é mais raro é não defender o orçamento, como se vê na reação do MEC e da Capes. É aceitar o corte, o contingenciamento, como se fosse natural e absolutamente absorvível, sem consequências para o sistema.
Quando foi anunciado o primeiro bloqueio de orçamento no MEC, de mais de R$ 5 bilhões, o ministro (Abraham Weintraub) saiu falando coisas do tipo, "ah, tem muita balbúrdia, vamos cortar em instituições que têm balbúrdia".
Nos últimos dias o MEC passou a falar que é contingenciamento e a levantar a possibilidade de rever (os cortes) se a reforma da Previdência passar, se a economia melhorar. Mas aceitar o bloqueio sem o mínimo de resistência é uma coisa muito estranha.
À época, o senhor assinou a carta contra os cortes como presidente da Capes, o que gerou uma saia justa com o presidente Temer.
A repercussão dessa carta foi muito forte. Ela amplificou o conhecimento do problema, e do impacto que poderia ter. E isso acabou sendo positivo. Houve espaço de diálogo, com apoio do MEC, para rever a tendência de corte orçamentário. Naquela ocasião, o MEC apoiou a Capes. E construiu-se uma defesa do investimento que era necessário na agência.
Como o senhor vê os cortes em cursos de filosofia e ciências sociais defendidos pelo governo?
Isso é preocupante. Não faz o menor sentido. Mesmo que se diga que é preciso investir em áreas sensíveis para o desenvolvimento do país, é uma insanidade desconhecer que as humanas são sensíveis para o desenvolvimento do país. Que dependemos do conhecimento produzido nas humanidades. É uma bobagem.
São muitos exemplos. A questão da segurança, das migrações, da mobilidade urbana. Do envelhecimento da população - como é que eu resolvo isso sem nada de sociologia? O problema da democracia no país não precisa de ciências humanas?
Com a revolução que está acontecendo nos meios digitais, e o impacto das redes sociais na construção dos embates políticos, eu não preciso? Essas coisas são alguns exemplos óbvios de que precisamos de reflexão construída a partir de conhecimento das ciências sociais.
O senhor vê um cunho ideológico motivando essas ações?
Há um exagero muito grande. Parece uma intenção de produzir um cenário ideológico reverso nas universidades. Acusa-se que universidades eram muito PT, muito de esquerda, e agora têm que ser conservadoras. Esse pêndulo que vai de 8 a 80 não é bom para as universidades. A universidade deve poder gozar de autonomia e ser responsável pela forma como organiza as atividades acadêmicas, de pesquisa e de formação de recursos humanos.
Isso vem no bojo de um conjunto de críticas sobre universidade pública e ensino superior, como se tudo estivesse errado. Como se tudo tivesse que mudar, mas sem dizer em que direção essa mudança deve ocorrer, qual é o projeto. Acho que temos que discutir seriamente uma nova política na universidade. Nem tudo está maravilhoso, as universidades precisam de uma reforma.
Mas não há um debate consistente sobre isso, apenas críticas soltas, sem uma reflexão sistemática sobre as universidades e sua relação com o desenvolvimento do país. Não pode ser uma nova política que simplesmente se apegue a uma crítica ideológica sobre esquerdismo nas instituições. O ensino superior é muito mais do que essa discussão. A sociedade precisa muito mais da universidade do que ela deixar de ser de esquerda e virar de direita.
Há quem veja nos cortes uma estratégia de minar aos poucos a universidade pública. O senhor vê assim?
Eu não acho isso ainda. Ainda não tenho elementos para dizer que está em curso um desmonte deliberado. Acho que é falta de conhecimento mesmo. O governo precisa entender melhor do que se trata. As pessoas não sabem com o que estão lidando. Inclusive números não são apresentados corretamente.
Acho que estão relativizando a importância do ensino superior com essa fixação na história do esquerdismo nas universidades. Isso prejudica a compreensão do papel mais amplo, mais importante e mais sério que cumpre para o desenvolvimento e para a sociedade.
Mas, neste momento, é preciso cuidar do orçamento, e para que esses cortes não façam desmoronar o que temos, não comprometam essencialmente a vida nas universidades públicas e a formação em recursos humanos. Senão, daqui a pouco, vamos ver que nosso desenvolvimento está sendo travado porque não temos recursos humanos para encaminhar alternativas.
O senhor presidiu a Capes durante o governo FHC e depois no governo Temer. Como a agência evoluiu nesse período?
A Capes se transformou na agência federal mais importante no apoio a formação de recursos humanos do país. É a agência que sustenta a pós-graduação no país, e é a pós-graduação que sustenta a pesquisa no Brasil. É fundamental para a manutenção de uma atividade de pesquisa saudável e produtiva no Brasil.
Para se ter uma ideia, a Capes hoje tem um orçamento três vezes maior que o do CNPq. Então, é uma agência muito importante. Se tem suas políticas comprometidas, isso prejudica o sistema de pós-graduação e de pesquisa científica do Brasil como um todo.
A agência também é responsável pelos esforços de internacionalização da pós-graduação e da pesquisa do país. E é central para a avaliação da pós-graduação. Então, ela fomenta, ela avalia, ela promove a internacionalização. Sem a Capes, o nosso sistema não funciona.
Como o senhor se sente vendo esse contingenciamento hoje?
Já passamos por tantas situações que não foram as mais desejáveis. Eu diria que o momento repete outras situações que foram vistas quase como uma ameaça ao sistema. Eu nem diria que esse é o momento pior.
É preciso lembrar do governo Collor, que extinguiu a Capes quando entrou. Depois, foi preciso fazer um trabalho muito grande em seu próprio governo para recriar a agência. Houve outros momentos de bloqueio de recursos muito fortes. No primeiro ano do segundo governo Dilma, houve um corte da ordem de 75% no orçamento destinado às atividades de pós-graduação que eram mantidas pela Capes da ordem.
Crises e bloqueios de orçamento a gente conhece. Mas a gente também conhece o diálogo entre universidades, pró-reitores, coordenação de cursos com a Capes para que se busque soluções, e isso é importante estabelecer imediatamente.
A redução de recursos pode trazer prejuízos à imagem internacional do país?
O Brasil tem cooperações e participa de projetos com muitos países. É um parceiro internacional importante para muitos países e universidades. Claro que os nossos parceiros internacionais sempre têm uma dúvida se as coisas no Brasil terão continuidade, ou experimentarão rupturas.
Duas coisas têm preocupado hoje internacionalmente. A primeira são as manifestações do governo sobre reduzir recursos para as humanidades. Pesquisadores dos mais variados lugares estão se movimentando para questionar, inclusive há um enorme abaixo-assinado mostrando forte preocupação com esse tipo de restrição (mais de mil acadêmicos de instituições como Harvard, Yale e Oxford assinaram o documento).
Se não forem superados, esses bloqueios de orçamento também vão acarretar uma preocupação internacional muito forte pelo impacto que tem. A capacidade do Brasil de continuar parceiro de iniciativas internacionais vai ficar muito restrita, e isso é muito ruim para o país no cenário atual, em que as pesquisas cada vez mais são globais e é importante ter parcerias para fazer pesquisas de impacto.
Fonte: Globo
Comentários
Postar um comentário