O cientista que percorre milhares de quilômetros para salvar uma das águias mais misteriosas da América do Sul

José Sarasola desafiou crenças populares para proteger a águia-cinzenta, uma das das mais ameaçadas da América do Sul (Foto: ARQUIVO PESSOAL)

 

Um encontro com uma águia morta mudou a vida do cientista argentino José Sarasola.

Ele havia acabado de se formar na universidade e começava seus trabalhos de conservação ambiental na província de La Pampa, no centro do país, quando viu a ave caída perto de uma cerca.

"Era uma águia-cinzenta jovem que havia sido abatida com arma de fogo, e foi meu primeiro encontro com uma destas aves", relata.

"Ela foi propositalmente colocada ali, porque existe uma crença, não só nesta região mas também na Patagônia, e em relação a outras espécies consideradas prejudiciais para o gado, como raposas e pumas, que expor os indivíduos abatidos dessa maneira mantém outros animais longe."

O pesquisador diz que o encontro foi marcante para seu futuro na conservação ambiental. Sarasola decidiu a partir dali se dedicar a proteger a água-cinzenta (Buteogallus coronatus), uma das mais ameaçadas de extinção na América do Sul.

Em sua missão de protegê-la, Sarasola desafiou crenças e percorreu milhares de quilômetros para levar sua mensagem aos povoados locais e escolas remotas.

E seu trabalho lhe rendeu neste mês um dos maiores reconhecimentos na área, o prêmio Whitney, entregue anualmente pela fundação de mesmo nome sediada na Inglaterra.

Espécie era quase desconhecida

A águia-cinzenta pode ser encontrada no Sul do Brasil, no Paraguai, na Bolívia e na Argentina, até o norte da Patagônia.

A União Internacional pela Conservação da Natureza, uma organização sediada na Suíça, diz que a espécie corre risco de extinção e estima sua populção global em menos mil indivíduos reprodutores.

A espécie corre risco de extinção, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (Foto: ARQUIVO PESSOAL)

 

Estas águias vivem principalmente em habitats áridos ou semiáridos formados por arbustos, pastagens e bosques, onde se alimenta dos animais que vivem nestes locais, principalmente tatus e serpentes, explica Sarasola.

O cientista fundou em 2001 o Centro de Estudo e Conservação das Aves de Rapina da Argentina (Cecara) na Universidade Nacional de La Pampa, por meio do qual começou a estudar a ecologia da águia-cinzenta.

"A espécie era quase desconhecida, não só para a população local, mas também para a ciência, já que o último registro de aninhamento havia sido feito há mais de 25 anos no noroeste argentino", destaca Sarasola.

Águias eram perseguidas e morriam afogadas e eletrocutadas

A primeira ameaça identificada pelo Cecara foi a perseguição de águias por humanos pela crença de que "comem as ovelhas". Sarasola também registrou casos de águias que morreram afogadas acidentalmente nos reservatórios de água para gado nestas regiões secas.

Outro grande perigo foi identificado quando o biólogo colaborou com o Centro de Biologia e Conservação do Estado de Virginia, nos Estados Unidos, para colocar rastreadores por satélite nas aves.

"Descobrimos que elas morriam eletrocutadas nos fios elétricos. É um problema que afeta especialmente as grandes aves, como as águias, porque ocorre quando o animal faz contato com dois cabos condutores ao mesmo tempo, algo que só aves maiores conseguem fazer ao voar a partir ou para os postes que sustentam a fiação", diz Sarasola.

Rampas e pontes

Para evitar os afogamentos, Sarasola e seus colegas criaram o que chamam de "rampas de resgate", uma estrutura feita com uma tela de arame para ligar a borda do tanque ao fundo. Assim, os pássaros e outros animais selvagens conseguem sair dos reservatórios e podem beber água com segurança.

Isso fez a mortalidade da fauna silvestre nos tanques equipados com rampas cair pela metade, e nenhuma águia-cinzenta foi encontrada afogada em um deles.

Quanto às mortes por eletrocutamento, o monitoramento das linhas de energia permitiu detectar os postes mais perigosos que, apesar de serem apenas 1% do total na área, eram responsáveis por quase 20% das mortes das aves.

"A característica que os torna tão perigosos é que são construídos em concreto (que são condutores de eletricidade por serem construídos com aço por dentro) e têm uma alça do cabo elétrico acima deles. As aves podem ser eletrocutadas ao estar empoleiradas no poste e, ao mesmo tempo, tocar na alça suspensa."

De acordo com Sarasola, a solução foi simplesmente colocar essas alças abaixo do topo do pilar.

Mudando crenças

Para combater a perseguição das águias pelos moradores locais, os cientistas monitoraram e filmaram as presas das águias. "Analisamos mais de 600 presas e nenhuma delas era de gado doméstico, então, o motivo do conflito não era real."

Os biólogos mostraram as filmagens e fotos de águias levando para seus ninhos presas de espécies silvestres como tatus, roedores e serpentes.

E explicaram a importância destas aves como predadores no topo da cadeia alimentar daquele ecossistema, ao se alimentarem de um grande número de serpentes venenosas e cobras.

Hoje, o conhecimento da espécie é muito maior. "Um exemplo disso é que, em dezembro de 2016, um artista local fez uma escultura de uma águia que logo foi colocada na praça principal da cidade de Santa Rosa, capital da província de La Pampa", diz o cientista.

A águia que chora

Sarasola percorreu milhares de quilômetros no oeste dos pampas argentino, uma zona árida de pouca densidade populacional, para levar sua mensagem às crianças. Os biólogos foram a escolas rurais para apresentar um documentário feito por Sarasola com o jornalista Matías Sapegno.

O filme A Águia que Chora conta a história verídica de um adolescente da região que descobre a espécie e seu ninho e participa com pesquisadores do estudo e monitoramento de uma águia-cinzenta jovem.

As crianças e suas famílias têm sido fundamentais nestes esforços, porque têm informações importantes sobre a localização dos ninhos e casais de águias. "É impossível reunir essas informações por conta própria em uma região tão vasta", afirma Sarasola.

As escolas visitadas pelos cientistas ficam em locais muito remotos e distantes de centros urbanos. Os alunos vivem nas escolas e voltam para suas casas a cada 15 ou 20 dias.

"Perguntamos nas conversas se eles conhecem alguma espécie que corre risco de extinção, e as referências deles são de outras espécies emblemáticas e conhecidas mundialmente, mas não vinculadas à sua realidade, como tigres e pandas", diz Sarasola.

"O que primeiro chama sua atenção é saber que vivem muito próximo de uma espécie nesta condição e que podem observá-la, com um pouco de sorte, no próprio pátio da escola ou em suas casas."




Fonte: Globo

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