As vozes do SXSW que valem para o ano inteiro
Entre os dias 7 e 16 de março, mais de 75 mil pessoas na região central de Austin, no Texas, dedicaram-se a um ritual matinal quase religioso. Primeiro, o silêncio. Em seguida, a cabeça flexionada para baixo, em direção ao smartphone. Às 9h em ponto, um frenesi. Três minutos depois, em idiomas e sotaques de mais de cem países, festejo pela conquista — ou, em outros casos, lamúria. Em 2019, prevendo o overbooking das palestras do evento, a organização criou o SXXpress, passe virtual que permite, a sortudos de mãos ágeis e boa conexão 4G, crédito pré-garantido para a palestra escolhida. Aos 32 anos, o festival ganhou ares de Disney, com filas desesperadoras. Muita gente, claro, não conseguiu respirar o mesmo ar de personalidades como o brasileiro Mike Krieger, fundador do Instagram e motivo de orgulho para a nossa enorme delegação. Tudo bem, diriam alguns: a maioria das apresentações está no YouTube. Será mesmo? Grande parte do salgado valor do ingresso tem a ver com a experiência de estar a metros de distância de quem admiramos. Ainda que em silêncio na sala, parte da graça de estar lá é refletir junto e estar na mesma vibe de quem tem autoridade para tratar dos temas que tiram o sono de quem se importa com o futuro das pessoas mais do que com o futuro da tecnologia. “Se você está reclamando, é porque não lutou o bastante”, afirmou a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. O que fazer, então? Lutar pela privacidade digital, disse Dennis Crowley, fundador do Foursquare. Cobrar mais impostos das empresas de tecnologia, sugeriu Margrethe Vestager, comissária de competição da União Europeia. Largar o celular e viver mais a própria vida, pediram o antropólogo Brian Solis e o escritor Douglas Rushkoff. Cultivar relações de confiança, aconselhou a terapeuta Esther Perel. Promover a diversidade no próprio círculo de amigos, disse a executiva Bozoma Saint John. São essas as vozes que, apostamos, falaram mais alto e ainda vão ecoar por muito tempo, provando que a maior fonte de conhecimento sobre negócios e o ser humano é, ainda, outro ser humano.
Autenticidade é o nome do jogo
Por Elisa Campos
A negritude cintilante de Bozoma é arrebatadora. Exalando autoconfiança sem um pingo de arrogância, cabelos longos, unhas afiadas e língua mais ainda, ela é inspiração pura para as mulheres que lutam pela igualdade de gênero, a despeito dos reveses da #metoo em Wall Street. E de sua própria passagem relâmpago pelo Uber, onde fora contratada para resgatar a reputação da empresa, afundada em escândalos de assédio. Ascensão profissional, para ela, tem a ver com ser aquilo que se é, respeitando sua história e falando no seu próprio tom. Aos presentes, deixou um convite para a autocrítica. “As pessoas falam de diversidade como se não fizessem parte do problema. Mas se todos os seus amigos são iguais, você faz, sim.”
Walk the talk
Por Daniela Frabasile
“Se vieram pela selfie ou para respirar o mesmo ar de um dos maiores teóricos da atualidade, podem sair”, avisa Luke Robert Mason, discípulo de Douglas. Um parente dele está internado em Nova York. Falaria por Skype. Quase ninguém se levanta. Douglas surge na tela. “Se eu fosse falar sobre meus outros livros, já estaria aí”, diz. “Mas Team Human é sobre o resgate de laços. E não seria honesto falar sobre isso enquanto uma pessoa que amo está no hospital.” Para ele, humanos são criaturas imprevisíveis. “É o que nos torna fascinantes.” Uma hora de palestra e ele pede novamente desculpas — agora, pela sessão de autógrafos. Aos interessados, ele promete enviar uma assinatura pelo correio. Basta deixar o endereço com Luke.
Dados com ética
Por Adriano Lira
O Foursquare surgiu como uma rede social em que os usuários compartilhavam sua localização com o mundo – os famigerados check-ins. Sim, parece outra vida. Anos depois, virou um guia e, hoje, vende informações sobre visitas e deslocamento dos usuários, mas sem revelar suas identidades. “Não é certo vender dados”, disse o empreendedor, que tem entre sua lista de fãs Steve Wozniak, cofundador da Apple. Seu discurso pela moralidade faz com que ele apareça como mocinho em uma história cheia de bandidos. Propostas tentadoras, admitiu, não faltam. Se ele vai resistir, o tempo dirá. Momento ternura: sua voz embargada ao lembrar dos amigos que teve de demitir ao longo dos dez anos da empresa.
Por mais Davis e menos Golias
Por Mariana Iwakura
Responsável pela fiscalização das leis da concorrência na União Europeia, a economista dinamarquesa mete medo nas gigantes de tecnologia. Donald Trump a define como “tax lady”(senhora dos impostos). Em sua palestra, a ex-ministra da economia, interior e educação faz questão de trazer à tona a discussão sobre gênero — o que ela aprendeu em posições historicamente ocupadas por homens. “Eles percebem que você é mulher, mesmo que se vista como homem. Então, por que se dar ao trabalho?”, provoca ela, em um vestido vermelho e branco. Cotada para a presidência da Comissão Europeia nas eleições deste ano, Margrethe pode se tornar ainda mais poderosa, temida e, é claro, respeitada — vestindo-se como bem entender.
Uma cidade em Marte
Por Daniela Frabasile
A palavra dinamarquesa para design pode ser traduzida por “dar forma”. É daí que vem a inspiração de Bjarke. “A arquitetura nos ajuda a moldar o mundo”, costuma dizer. Em 55 minutos, ele mostra como. Um telão exibe as imagens de prédios desenhados para maximizar a eficiência energética, módulos de habitação popular, escritórios de gigantes como Google e Lego, bairros que buscam melhorar a relação dos cidadãos com as cidades, um projeto para proteger NY de inundações e uma ideia para construir cidades flutuantes. Empolgado, ele fala rápido, gesticula. “A gravidade aqui é sempre a mesma, as leis da física funcionam sempre da mesma forma”, diz. Ele começa a detalhar seu plano para construir uma cidade em Marte.
Faça o que eu falo
Por Adriano Lira
Se você nunca ouviu os podcasts dela, pare de ler este texto. Pronto. Agora, podemos seguir com a nossa programação normal. Só que, desta vez, no escritório. Esther fez seu encore (i.e.: repeteco) como keynote mostrando que a dinâmica das relações afetivas pouco difere das profissionais. Seus conselhos não são, digamos, originais: é importante saber trabalhar em equipe, mudar a si mesmo em vez de falar mal dos outros etc etc etc. Mas ela é tão carismática que tudo que sai da sua boca sorridente parece fazer sentido. Hipnotizada, a plateia foi à loucura quando ela, casada há mais de 35 anos, disse que ok se relacionar com vários parceiros — e empresas — ao longo da vida. É o tal do poliamor. E está tudo bem. Então, tá.
Política não é cafeteria, mas...
Por Mariana Iwakura
Enquanto esteve à frente da Starbucks, Howard levou a empresa ao posto de maior rede de cafeteria do mundo. No principal palco do SXSW, ele se apresenta como uma alternativa a republicanos e democratas na corrida presidencial dos EUA. Howard então evoca a origem humilde — “Minha única herança foi a crença de minha mãe na promessa do país”— e sua trajetória na Starbucks. Além de conceder auxílio-educação, ele transformou os funcionários em donos, distribuindo cotas da empresa. Aos detratores, ele provoca: “Quantos aqui nesta sala ouviram que a sua ideia nunca se tornaria realidade?”. Ok, ok, mas quantas delas não decolaram? Dele, ainda se espera um bordão tão potente quanto “Make America Great Again”.
As criptomoedas ainda estão devendo
Por Daniela Frabasile
“Criptomoedas não são um bom substituto para o dinheiro”, disse Schwartz, para o espanto da plateia, boa parte de investidores. Para ele, pagamentos domésticos funcionam bem o bastante e, portanto, não há razão para buscar uma alternativa. A não ser, claro, nas transações internacionais. Sem parecer nostálgico, ele disse que a baixa no valor das moedas virtuais, o “criptoinverno”, faz mais bem que mal ao ecossistema e tem sido ótimo para espantar especuladores. Surpresa, ouvi com atenção essa mente brilhante dizer que o blockchain é uma tecnologia de fraldas, carente de talentos. Ainda são poucas as aplicações úteis, é verdade. Schwartz tem razão. Na saída da sala, porém, percebi que os sonhadores preferem ser felizes a ter razão.
E agora, Mike?
Por Mariana Iwakura
De camiseta preta e jeans, sem um pingo de sotaque, Mike passaria fácil por um americano. Ao lado do sócio, contudo, ele revela raízes mais cordiais. No bate-papo com o jornalista Josh Constine, do TechCrunch, ele escapuliu com elegância das perguntas mais capciosas envolvendo o Facebook e seu criador, Mark Zuckerberg. O público foi embora sem saber se restou alguma rusga entre eles no processo de compra e venda. Mas, por agora, isso importa pouco. Seu período sabático (minguados cinco meses), diz, está perto de chegar ao fim: “Estou me animando com novas ideias. Tenho a sorte grande de ter ao meu lado alguém com quem quero fundar outra empresa”. Quem disse mesmo que brasileiro não gosta de trabalhar?
O lugar da fala
Por Mariana Iwakura
Alexandria tem conseguido mais espaço sob os holofotes que muitos presidenciáveis que também subiram ao palco do SXSW — caso de Howard Schultz, ex-CEO da Starbucks, e da senadora Elizabeth Warren. A diferença é que a língua materna dessa expert em redes sociais é a mesma dos millennials — e a da geração Z. Sob aplausos intermitentes, ela hasteou ali a bandeira do Green New Deal. A saber, proposta um bocado utópica para reduzir a emissão de gases e garantir emprego e educação para os mais pobres. Hábil, ela revela que sua estratégia nunca passa pelo convencimento do interlocutor. Quanto mais feroz, mais perguntas ela faz. Tenta entender a raiz da convicção para, só depois, expor seus argumentos. Fica a dica.
Tirem os olhos do celular
Por Elisa Campos
Na série interminável de sessões do SXSW, há os bons apresentadores, os maus e Brian. O antropólogo digital nasceu para os palcos. Diante dele, a audiência acostumada a checar freneticamente as mensagens de WhatsApp larga o celular por alguns minutos. Raciocínio cortante, entre uma piada e outra Brian faz reflexões profundas — muitas vezes, incômodas. Vivo da maneira correta? Ele descobriu que não. Em um determinado momento, enquanto escrevia um livro, percebeu que a tecnologia, que estudava havia 20 anos, minava sua criatividade. “Mesmo quando estava lendo uma história para meus filhos dormirem, eu não estava ali”, conta.
Os startupeiros sessentões da Quibi
Por Marcelo Moura
Milhares de pessoas trocaram o almoço do dia 8 de março para entrar numa fila sem fim. Às 14h, o palco foi ocupado pelos fundadores de uma startup que já é quente mesmo antes de nascer, a Quibi. Não houve demo, mas quem esteve ali entendeu que se trata de uma espécie de Netflix para smartphones, com lançamento previsto para 2020 e assinatura a US$ 5. Dito assim, pode não parecer grande coisa. Meu celular, hoje mesmo, tem Netflix. O problema é que eu não assisto a nada ali. Alguém? Mas essa startup de gente grande cativou Steven Spielberg e Guillermo del Toro, entre outras estrelas de Hollywood. Os estúdios investiram US$ 1 bi. Não querem perder a próxima onda. Só não se sabe se ela tem duas sílabas.
A vida como ela é
Por Elisa Campos
Fundador da maior rede varejista de maconha dos Estados Unidos, Adam está animado. É chegada a hora de colher a recompensa dos investimentos feitos em um mercado de risco. “Se já é difícil criar um negócio, imagine fazê-lo enquanto se constrói uma indústria”, disse ele a uma plateia ávida por experimentar as novidades do “track da cannabis do SX”, inaugurada neste ano. Os ventos da liberalização da erva sopram mais fortes. Desde 1996, 33 estados americanos legalizaram o consumo por razões médicas. Dez deles permitem o uso recreativo. A indústria da maconha registrou no ano passado uma alta de 28,8% no faturamento, alcançando US$ 12,9 bilhões.
O futuro a nós pertence
Por Elisa Campos
Amy é uma mulher assertiva. E muito segura de si. À plateia que assiste fascinada à sua palestra, pede aplausos. Ela merece as palmas que dominam a sala. Autora de um exaustivo catatau de 62 megas sobre tech trends, ela pinçou algumas tendências de impacto para os presentes, como o fim da privacidade e pela ascensão das casas inteligentes. No primeiro caso, o risco de catástrofe, com empresas trabalhando ativamente para evitar a proteção de nossos dados biométricos, por exemplo, é de 40%. No segundo caso, a probabilidade de dar tudo errado é de 70% (e zero de ficar tudo bem). Um exemplo do pior desastre? A tecnologia tomando decisões sobre nós. Nesse momento, a audiência espantada solta um “oh”. Calma! O futuro a nós pertence. “Está em nossas mãos construí-lo”, diz Amy. “E o futuro se faz com flexibilidade, colaboração e trabalho.” Bora trabalhar...
O estagiário
Por Sandra Boccia
Ele não foi keynote. Falou em uma sala discreta, com uma colinha por escrito em punho, a não mais de cem ouvintes encantados. Seu ponto: com a velocidade das mudanças, todos ficarão velhos cada vez mais cedo. Mas o brilho técnico da juventude não é suficiente para construir uma empresa. Profissionais mais experientes são necessários, sim. Conley fala com propriedade. Depois de ter feito fortuna na indústria hoteleira e vender sua rede, entrou para o Airbnb aos 52 anos, sem ao menos saber o sentido da palavra “produto”. Seu cargo era o de diretor, mas ele se comportou como estagiário. Mentorou e foi mentorado. Quando saiu, a startup de Brian Chesky valia três vezes mais. E seus colegas não reparavam mais nas suas rugas.
Fonte: Globo
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