Empreendedor conta como um trauma e o encontro com a religião mudaram sua forma de fazer negócios
“Na minha infância, nos anos 90, meu pai tinha uma pequena fábrica têxtil no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e atendia uma rede varejista famosa. Um dia, recebeu um pedido enorme. Para dar conta, pegou um empréstimo no banco e usou o próprio imóvel da empresa como garantia. No meio do caminho, a varejista cancelou o pedido e o banco tomou tudo do meu pai. A estrutura da minha família praticamente acabou. Vi isso acontecer com 8 anos de idade e foi muito marcante na minha vida. Vi meu pai querendo ser honesto mas, como pequeno empreendedor, não tendo poder nenhum frente a um banco. Isso se repetiu: meu pai recomeçou do zero mais de uma vez e nunca conseguiu ter um negócio de maior porte. Num certo momento, ele chegou a morar dentro de um carro que deixava num posto de gasolina. Isso mexeu muito comigo, vendo-o tentando sempre recomeçar do zero, vendendo de pouquinho em pouquinho, acordando às 4h da manhã, enfrentando dificuldades.
Conforme entendi melhor o que meu pai fazia, notei que ele usava muito o serviço de desconto de duplicatas e continuava sempre dependente de crédito dos bancos. Era um crédito muito caro e ele nunca saía com lucro da operação. Eu me lembraria disso para sempre e tiraria daí inspiração para o negócio que criaria depois. A gente conversava muito.
Conforme cresci e me esforcei nos estudos, consegui uma bolsa num programa para latino-americanos nos Estados Unidos. Fui estudar economia na Universidade de Chicago no começo de 2006. Ainda na faculdade, consegui uma oportunidade no banco Credit Suisse, indo depois para a divisão de private equity, em Nova York. Um analista chegava a receber o equivalente a R$ 400 mil por ano. Eu ganhava muito bem, mas tinha aquela vida de não conseguir ver a luz do dia. Trabalhava até 110 horas numa semana.
Em março de 2008, numa viagem para o Brasil, no voo 842 da United Airlines, uma quinta-feira à noite, imediatamente após a decolagem, percebi um bando de pássaros no caminho da turbina. Naquela fração de segundo, enxerguei o perigo e já comecei a pedir por uma intervenção divina. Eu estava sentado ao lado da asa. Vi o bando de pássaros entrar na turbina, a peça explodir e o avião começar a pegar fogo.
Como entendi depois, o piloto tinha duas opções: tentar pousar de imediato com o motor naquele estado, correndo o risco de explodir o avião, que estava carregado de gasolina, ou despejá-la e voltar ao aeroporto praticamente sem combustível. Ele escolheu a segunda opção. A mulher ao meu lado estava desesperada, chorando. Pensei que poderia morrer, pensei em Deus e na religião, pensei: será que vim ao mundo para trabalhar mais de 80 horas por semana num banco de investimentos e nunca trazer alguma melhoria ao mundo? Esse vai ser o meu legado? Eu, que cresci numa família judia pouco religiosa, vi que precisava de um milagre. Passei a me conectar com Deus. No processo de despejar a gasolina, foi questão de 17 minutos entre o incidente e o pouso, bem-sucedido. Fiquei extremamente emocionado por ter dado tudo certo. Desci do avião chorando muito.
Era 1h30 da madrugada de quinta para sexta, e o cara do balcão da companhia aérea tentou me tranquilizar — me encaminhou para um voo posterior, que chegaria ao Brasil na sexta-feira à noite. Eu me lembrei de uma coisa que meus pais sempre falavam, envolvendo o descanso do sétimo dia, o shabat [quem observa as leis do shabat não pode usar meios de transporte depois do pôr do sol de sexta-feira]. Estava com aquela ideia recém-colocada na cabeça, por causa da experiência traumática e dos meus pensamentos em Deus. Não sabia bem como explicar o que era o shabat, mas falei ao rapaz que não podia pegar aquele voo de jeito nenhum. Ele ficou sem entender muito bem, disse que então não podia fazer mais nada porque tinha muita gente para atender ali. Acabei ficando e foi uma escolha que determinou muito do que aconteceria comigo depois. Foi quando me tornei religioso.
Isso se tornou muito forte em mim com o tempo. Em 2009, resolvi ir para Israel estudar lógica talmúdica [Talmud é uma coleção de textos centrais para o judaísmo] por um tempo. Me ajudou nisso um programa chamado Birthright, sustentado por magnatas americanos que pagam para judeus irem a Israel se reconectar com as origens. Em 2013, me mudei de vez para Israel. Hoje, vivo com minha família em Jerusalém, mas passo geralmente duas semanas por mês no Brasil. Minha esposa também é brasileira e temos dois filhos, de 3 e 5 anos de idade. Adoro o Brasil, mas sempre sofri muito com a violência. Já fui assaltado sete vezes. Se nos Estados Unidos já tinha sentido uma melhoria grande na segurança no dia a dia, em Israel a diferença é ainda maior. Crianças com 6 anos de idade vão sozinhas para a escola, e fica tudo bem. Há conflitos políticos e religiosos, alarme avisando de ataque com foguetes, mas a população aprendeu a conviver com isso tudo. Há uma rotina para se proteger quando toca a sirene. Você entra no bunker, torce para dar tudo certo e continua a vida. No Brasil, há uma loucura descontrolada, nunca se sabe quando algo pode acontecer. Para mim, é mais fácil conviver com a primeira realidade do que com a segunda.
Em Israel, consegui me reconectar com o trauma que tive quando criança e vi meu pai perder tudo. Foi minha inspiração, quando passei a me dedicar a algo muito importante no judaísmo ortodoxo: tentar trazer uma coisa boa para o mundo, promover algum tipo de conserto para melhorar a vida das pessoas, seja de forma particular, seja pública. Eu tinha visto meu pai sofrer. Tinha viva na memória a prática dele com o desconto de duplicatas e a dificuldade que aquilo trazia para uma pequena empresa. Então pensei: como posso diminuir o custo para que pessoas como ele, com pequenas ou médias empresas, consigam tomar crédito e ao mesmo tempo crescer? Com antecipação de recebíveis mais prática e barata, graças ao uso de tecnologia. É isso que faz a fintech que criei em 2014 e que hoje se chama Weel.
Até então, em casa a gente sempre havia respeitado religião, mas era algo mais distante. Meu avô nasceu na fronteira entre Alemanha e Polônia, é um sobrevivente do holocausto que conseguiu fugir e veio morar num banheiro de uma fábrica de chapéus no Brasil. Ele fez isso muito jovem e foi morar em Ponta Grossa (PR), um lugar praticamente sem judeus. Aos poucos, foi perdendo costumes da cultura judaica.
Mesmo assim, continuou a vigorar na minha casa o pensamento de que a educação importa mais que tudo. Meus pais não me davam trégua — tinha de fazer a lição na hora determinada, ter os deveres em dia, ser o melhor aluno da sala. Eles achavam que era o único jeito de você se tornar alguém na vida. Eu jogava tênis e, quando comecei a competir de forma constante, podendo me tornar profissional, meu técnico chegou a sugerir que eu largasse a escola. Eu gostava muito do trabalho que estávamos fazendo, mas havia crescido pensando que sem educação você não vira nada. Então, larguei o esporte. Por isso, também, acabei indo para os Estados Unidos: meus pais achavam as faculdades do Brasil muito fracas em relação às americanas e sempre me empurraram nessa direção. A crença na educação, então, me levou a um desenvolvimento profissional. Mas foi a religião que moldou a forma como encaro os negócios.
Essa transformação me trouxe duas noções muito importantes: ética e valores humanos deveriam se integrar totalmente à minha vida profissional; e trabalho não é tudo, mas a família, sim. Se a empresa dá essa possibilidade ao funcionário, melhora muito a dinâmica na casa de cada um, com seus entes queridos, e as pessoas se tornam melhores também no ambiente de trabalho. No negócio que criei, hoje com equipe de 70 funcionários, trabalham muitos judeus ultraortodoxos. São pessoas com muitos filhos, que precisam se dedicar a essas famílias grandes. Fazemos o possível para conciliar essas necessidades com o crescimento da empresa. Manter os valores familiares acima de ganho financeiro é um desafio. Fazer isso conduzindo um negócio é ainda mais complicado.
No ambiente de bancos de investimentos, que vivi no início da carreira, você e o colega eram competidores — era certo que um dos dois ia ficar e o outro ia sair do jogo. Trabalho com outra lógica: não só as pessoas, mas tudo que uma empresa faz deve ter como objetivo melhorar alguma coisa no mundo, não só ter lucro.
Acredito que, mantendo a ética e os valores a todo momento da sua vida profissional, haverá uma grande recompensa depois. Tem gente que ganhou muito dinheiro, mas com pouquíssima ética. Já tive uma situação com um investidor que mostrou o lado negativo dos negócios. Ele fez uma oferta tentadora. Era um meganegócio, mas entendemos que às vezes é melhor deixar passar uma oportunidade de benefício econômico, se vier de alguém que não quer o seu bem. Já tivemos o desafio de achar que o cliente estava cometendo uma fraude, ao mesmo tempo em que enfrentava uma situação econômica difícil. Não queríamos denunciá-lo, mas sim ajudá-lo a crescer da forma correta. É difícil.
Na Weel também podemos fazer pausas para oração e estudo, como requer a rotina de ultraortodoxos. Atuar no mundo dos negócios exige que você imponha seu ritmo e seus valores. Acredito que se possa influenciar outras pessoas a melhorar. Tiro isso dos provérbios do Rei Salomão: assim como a água reflete o rosto, sua vida reflete o seu coração. Numa transação comercial, não preciso ter a maior vantagem possível sobre a outra parte. Quero o bem dos outros, acredito que os dois podem ganhar e posso fazer com que o outro também pense dessa maneira. Aí, acabo transformando a visão dele também.
Fonte: Globo
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