Cresce o mercado da internet das coisas em movimento, que vai conectar carros e aviões
Um grupo de engenheiros e cientistas na Inglaterra precisou testar, em fevereiro, uma rede altamente confiável de internet das coisas (IoT) entre objetos móveis. Acharam um jeito ótimo de fazer isso. Numa terça-feira de tempo claro, colocaram veículos conectados para percorrer as estradas do vasto campo de provas de Millbrook, a 80 quilômetros de Londres. Pareceu corrida maluca: o experimento misturou caminhão de bombeiro, caminhão de carga, ônibus, van, ambulância, viatura de polícia e carros comuns, espalhados ao longo do trajeto, todos com câmeras embutidas, transmitindo vídeos ao vivo por uma rede celular de quinta geração (5G). A rede operou sempre acima de 1 Gbps (ou seja, pelo menos 30 vezes a velocidade média das melhores conexões de banda larga no Brasil). Pela faixa mais externa, voava baixo o astro do show, um McLaren 570s amarelo, a 200 quilômetros por hora. Ultrapassava os demais várias vezes, consecutivamente. Parte importante da brincadeira era conferir a qualidade da comunicação com o carrão, quando ele passava da área de uma antena de celular para a seguinte. Havia 11 delas ao redor do circuito. O streaming de vídeo e a transmissão de dados do motor do veículo seguiram impecáveis.
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Foi um novo passo rumo à internet das coisas móveis, a rede que apenas começa a conectar objetos que se deslocam — veículos sobre rodas, navios, aviões, drones, trens, bicicletas, patinetes elétricos, robôs entregadores. Essa “sub-rede” tem exigências diferentes de outra parte da IoT, que conecta objetos estáticos (como robôs fixos numa linha de produção, câmeras de segurança, casas e eletrodomésticos). Coisas móveis precisam transitar entre diferentes cidades, países e continentes sem nenhuma interrupção na cobertura, ao passar pelas redes de diferentes operadoras. Requerem respostas em frações de segundo, como no caso de carros autônomos recebendo orientações de semáforos e estradas inteligentes. A experiência de Millbrook representou um sucesso técnico e deu um exemplo perfeito de como vão funcionar os negócios nessa área: em cooperação intensa entre muitas companhias. As redes têm complexidade cada vez maior. Colaboraram com o teste empresas de hardware (Airspan, americana), software (Quortus, britânica), engenharia (Celestia, holandesa), consultoria (Real Wireless, britânica), automóveis (McLaren) e telecomunicações (a Telefônica britânica), além da Universidade de Surrey.
As conquistas tecnológicas, porém, não resolvem questões ainda em aberto nos modelos de negócios da IoT móvel. Parte fundamental de sua infraestrutura é a rede 5G, de implementação cara e trabalhosa, por precisar de mais antenas, mais próximas entre si, que as gerações anteriores (as antenas estão muito menores, mas isso ainda exige algum debate de engenharia e urbanismo). A maioria das operadoras afirma não ter recuperado ainda os investimentos na rede 4G, inaugurada no mundo em 2008 e no Brasil em 2013. Há uma corrida em andamento entre as companhias para encontrar oportunidades e avaliar gastos com a próxima mudança. A Vivo, maior operadora no Brasil, prevê oferecer uma nova geração de serviços em IoT no primeiro trimestre de 2020 e inaugurar a rede 5G comercial no início de 2021 (se o leilão de banda ocorrer no começo do ano que vem, como planeja o governo federal). “Nos próximos anos, vamos conectar carros, casas e cidades, o que vai aumentar de maneira significativa o tráfego de dados. Vamos precisar de mais rede de acesso, mais backbone e mais fibra”, afirma o CEO da operadora, Christian Gebara. A Vivo conecta 8 milhões de disposivos não tradicionais (ou seja, sem contar smartphones e computadores). A maioria deles é móvel, como carros, contêineres e navios.
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Na corrida das empresas rumo ao pote de ouro da IoT móvel, um ponto de passagem obrigatório será apresentar novos serviços em fevereiro de 2020 no MWC Barcelona, maior evento de conectividade do mundo. Em 2018 as companhias apresentaram ideias e, em 2019, experimentos — além do teste em Millbrook, chamaram a atenção o dirigível conectado da Korea Telecom (sobrevoando a Coreia do Sul, atendendo a comandos enviados de Barcelona) e o caminhão conectado da Ericsson (circulando num estacionamento na Suécia, pilotado remotamente de Barcelona). “O que vimos no MWC este ano indica uma tendência. Espero ver em 2020 mais hardware e mais propostas de valor e modelos de negócios”, diz Christian.
A segunda maior operadora no país, a Claro Brasil, também adota tom cauteloso. “Não penso em 5G nos próximos três ou quatro anos, mas estamos investindo desde 2017 para modernizar a rede [3G e 4G] inteira. Os novos equipamentos criam duas ‘sub-redes’ dedicadas à IoT”, diz Eduardo Polidoro, diretor de IoT e M2M na Claro Brasil (grupo das marcas NET, Claro e Embratel). O executivo prevê que a troca dos equipamentos termine este ano e que a IoT responda por mais de 10% da receita do grupo até 2025. A Claro Brasil conecta mais de 1 milhão de dispositivos móveis, de patinetes elétricos a caminhões de carga.
Enquanto as grandes se organizam para cobrir países inteiros, as pequenas cavam novos nichos. Frotas de patinetes elétricos, como os da Yellow e da Lime, estão conectadas à internet. Uma das grandes fabricantes desses equipamentos, a chinesa Ninebot, comprou em 2015 a americana Segway. A Segway, por sua vez, deve apresentar este ano ao mercado seu robô entregador conectado. A companhia de transporte Continental imagina um passo além — vans autônomas distribuindo pela cidade “matilhas” de robôs-com-patas. A IoT móvel chegou também à frota de bicicletas elétricas da rede de pizzarias Domino’s. Com o sistema criado pela francesa Morio, a rede consegue localizar as bicicletas em qualquer parte da Europa. A tecnologia permite acompanhar o uso da bicicleta e saber se o ciclista conduziu a entrega de forma responsável (a Domino’s testa desde 2016 robôs entregadores de pizza, mas ainda não os conecta à internet). Bicicletas e patinetes compartilhadas ainda transmitem pouca informação. Há aplicações mais ambiciosas já em fase comercial.
Um motociclista não vai precisar baixar a cabeça, enquanto pilota, para conferir a rota no celular. O mapa e outras informações vão ser projetadas em seu campo de visão, como ocorre em aeronaves de caça. O capacete se comunica com o celular graças ao sistema da startup francesa EyeLights. O piloto também pode receber uma ligação no capacete e ouvir orientações sem precisar desviar o olhar da via. Dois engenheiros que amam motos fundaram a empresa em 2016. Romain Duflot e Thomas de Saintignon, ambos de 27 anos, haviam iniciado o projeto na faculdade de engenharia, no Icam (sigla em francês do Instituto Católico de Artes e Ofícios). Assim que tirou a habilitação para motos, Romain, filho de um ex-piloto de caça, decidiu dedicar-se à pesquisa para levar aos motociclistas algo só disponível na aviação militar: o HUD (heads-up display), um monitor integrado ao campo de visão, para evitar que o piloto baixe os olhos para o painel. Levaram dois anos para desenvolver o produto, à venda na França, Bélgica e Suíça. Vislumbram o dia em que os sensores se conectarão com a moto. “Onde quer que haja a necessidade de um acessório HUD, podemos adaptá-lo. Isso é a internet das coisas, que permite adaptações sem limites”, afirmam Duflot e Saintignon.
A adaptabilidade fez quatro jovens especializados em engenharia e aeronáutica darem asas, literalmente, à inspeção de aeronaves. Drones equipados com câmeras e sensores, conectados à rede, fazem em minutos o que uma equipe só de humanos levaria até oito horas para fazer. Circulam a aeronave e geram, em tempo real, imagens e relatórios, sem ninguém no comando. A tecnologia criada pela francesa Donecle vem sendo usada pela Air France-KLM. Na aviação comercial, uma aeronave grande parada representa perda da ordem de US$ 10 mil por hora.
Nenhuma empresa levou tão ao pé da letra o conceito da IoT móvel quanto a portuguesa Veniam. Criada na incubadora da Universidade do Porto por dois professores universitários, João Barros e Susana Sargento, a empresa construiu uma rede de internet com veículos. Pegou carona em táxis, caminhões de coleta de lixo e ônibus para transformá-los em roteadores. Cada veículo recebe e transmite. Ao transitar próximo de um ponto de acesso fixo num poste, um veículo capta o sinal e o transmite a outros equipados com o software. Essa rede em movimento está disponível no Porto, em Nova York e em Cingapura. “Nossa meta é levar a tecnologia para milhões de veículos por meio de projetos que temos com fabricantes de automóveis no mundo todo”, diz João Barros, CEO da Veniam, na sede da empresa, no Porto.
O trabalho começou com uma provocação. Um amigo perguntou a ele por que não instalar roteadores nos carros, já que eles andam para todo lado. O pacote tecnológico desenvolvido envolve mais de 150 patentes e rendeu à empresa vários prêmios. As aplicações vão se desdobrando. No Porto, caminhões de lixo transmitem dados sobre qualidade do ar e condições climáticas para a Câmara Municipal. “Não recolhemos dos motoristas nenhum dado sensível, como onde foram ou quanto tempo passaram onde quer que seja”, diz Rui Costa, diretor de Tecnologia da Veniam. “Nossa proposta é pensar no problema à frente: como é a internet que os veículos autônomos precisam?”
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A ideia de que qualquer objeto um dia terá algum grau de conectividade é o mantra da Evrythng, startup britânica que criou e gerencia milhões de identidades digitais. O produto conectado é mais inteligente, interativo e rastreável, logo, mais valioso, difunde a empresa. “Cerca de 4 trilhões de produtos são feitos para consumo todos os anos e não sabemos para onde vão, porque não estão conectados. Uma vez resolvido isso, vão surgir muitas oportunidades de negócios”, diz Niall Murphy, CEO e fundador da Evrythng. “Já usamos a internet para procurar informações de indivíduos. Por que não de objetos, como meu par de tênis?” Murphy, um irlandês de 49 anos, já havia criado e vendido algumas empresas. Em 2011, fundou a Evrythng, após obter US$ 25 milhões de investidores. Em um ano, fechou parcerias com organizações como a americana Avery Dennison, maior empresa de etiquetas de roupa do mundo, e a gigante de embalagens WestRock. As oportunidades são numerosas, os riscos também. Assim como no caso dos automóveis conectados, o rastreamento de objetos pode afetar a privacidade do consumidor. Murphy explica sua expectativa otimista: não se trata de um objeto entregar informações sobre o consumidor, e sim de o consumidor acessar informações do que está comprando. “Mas claro que privacidade é uma questão séria. As leis e regulações vão ter de ajudar.”
*O jornalista viajou ao MWC Barcelona a convite da Vivo
Fonte: Globo
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